terça-feira, 28 de março de 2017

LENDA DO CORDÃO DE FOGO

O Desafio Cultural para inclusão de textos no "Dicionário de Lendas Inventadas" (autorais e compiladas por Marcos Ivan de Carvalho) traz mais uma página interessante.
Com a proximidade da Semana Santa, essa lenda narra um fato possivelmente verídico acontecido anos atrás também em Pindamonhangaba, cidade "sede" do Dicionário.

Participe você também deste Desafio, enviando sua contribuição, devidamente assinada e autorizada a ser publicada.
Nome completo, RG, endereço de email, cidade. Utilize nomes fictícios, quando se referir a personagens verdadeiras.
Endereço para envio: ivanpress@gmail.com.
Desafio Cultural meramente recreativo, sem fins lucrativos. De repente, fluindo, se transforma em livreto.

Lenda do Cordão de Fogo


Pessoas mais antigas da cidade garantem ser verdade a Lenda Inventada do “Cordão de Fogo”.
Pesquisei junto a alguns jornais mais antigos e, realmente, encontrei algumas referências, apesar de rasas, a respeito.

Era tradição, pelos lados do antigo Campo do Bambi, hoje importante parte do Jardim Cristina, em Pindamonhangaba, algumas famílias se reunirem para festejarem o Sábado de Aleluia.
Os preparativos começavam já na Sexta-feira Santa, com a molecada toda procurando montar um enorme boneco representando o Judas. Esse bonecão seria espancado até virar farelo, no sábado ao meio dia.

Como não havia iluminação pública, o pessoal se reunia, comprava querosene na vendinha do Zé Baixinho e montava uma rede improvisada, com lamparinas fabricadas utilizando-se latas de óleo de cozinha. Naqueles tempos ainda não se falava muito em reciclagem e o plástico passava longe de ser substituto de muitas embalagens fabricadas, até então, em vidro ou lata.

A cada cinco ou seis metros, uma lamparina improvisada, sobre um pedaço de bambu fincado no chão. Altura de mais ou menos dois metros, já que a maioria do grupo era de crianças trabalhando na montagem do boneco, preparando as varas de espancamento, montando fitas de bombinhas “cabeça de nego” para compor o recheio do Judas.

Seu Arlindo, um baixote de uns 70 anos de idade, botava as mãos na massa e fazia, com jornal e trigo, a careta do condenado. Enquanto trabalhava, cantava qualquer coisa ininteligível, fazendo a garotada se divertir ao tentar entender o que o velhinho dizia no canto.

Chico da Zefa, um invocado carvoeiro, era o encarregado de montar as lamparinas, enfiar os cordões pelo furo da tampa das latas e encher o reservatório com querosene “Jacaré”. O rapaz não gostava de ser atrapalhado nessa importante tarefa.

Lá pela meia-noite da Sexta-feira Santa, as mães das crianças chegavam com bolão de fubá, café com leite, bolachas, pipoca e “minduim” torrado e pão de nhame. Era quando seu Arlindo largava a escultura de jornal e trigo, esfregava as mãos no avental e chegava “premêro” na fila do bolão. Pegava duas fatias. Dizia que era uma para ele e outra para o Judas, a sua última refeição...

Até um dia, não se sabe ao certo qual o ano, tudo deixou de acontecer no Campo do Bambi. Era hora do café noturno.

Arlindo, apostando corrida com Chico da Zefa, tropeçou numa das pernas do Judas, se enroscou todo numa das lamparinas acesas ali perto, exatamente uma que Chico montava e não havia, ainda, cortado a sobra de cordão.
Para ajudar, o rolo de cordão estava em cima do latão de querosene. Chico usava passar a ponta do cordão por dentro da alça da tampa do latão, improvisando um esticador.

No alvoroço que se seguiu, para acudir o velhote, Dona Gorda, a madrinha da turma, trombou com um dos moleques e se firmou num poste de bambu que já continha uma lamparina.
A chama da lata incendiou o latão de querosene, que estava tombado, molhando o pé do boneco.

Pelamor”!, alguém gritou.
Si manda tudu mundu”, disse outro, acrescentando que ia “isprudí” tudo...

E foi assim...
O Judas, já gordo de bombinhas, buscapés, “peidos de véia”, começou a pular feito perereca assustada. Não parava no chão.

Era estouro do todo jeito, para todos os lados. Enquanto isso, ninguém olhava para trás. Era só correr e correr para não se queimar.
Seu Arlindo, apesar de assustado, não se machucou. Apenas chorava o “disastri” e procurava, no dia seguinte, o resto da cara do Judas.

Chico da Zefa, com um dedão enfaixado por causa de queimadura, ajudava o velhote, pedindo desculpas pela brincadeira doida de correr feito criança só para pegar bolão de fubá.
Nos anos seguintes não mais houve o “mutirão do Judas”.

As pessoas mais cismadas começaram a dizer que foi vingança do boneco.
Todos os anos ele apanhava, apanhava, apanhava e, ainda por cima, era “detonado” por inteiro.
Não sobrava um pedaço de roupa. Tudo queimado. Vez ou outra, uma sola de sapato velho, um resto de chapéu de palha. Isso, quando “voavam” no começo das explosões.

O costume, com o tempo, era de as pessoas se reunirem na beirada do campo, com café e bolão, para trocar conversa e lembrar as façanhas dos mutirões passados.
Há quem afirme, dessa época, ter visto um enorme boneco desenhado no chão do campo de futebol, na Sexta-feira Santa. Era um desenho feito com uma espécie de cordão de lamparina, aceso e com brilho intenso, amarelo e vermelho. Depois de alguns minutos no chão, o desenho em cordão de fogo se levantava e saía correndo atrás de quem se aproximasse.

Até chamaram o padre Simeão para benzer o lugar. Ele foi para agradar a turma, aproveitou para tomar café com bolão. Naquele ano o boneco vingador não apareceu em forma de cordão aceso.
Anos seguidos, conforme anotações na caderneta de dona Vivinha, a professora do bairro, o bonecão apareceu sim, todo aceso e correndo atrás dos curiosos.

Vou esperar a próxima Sexta-feira para ver ser isso acontece ainda.
O problema é que o campo já não existe e quem vai fazer o café com bolão?
Se você tiver coragem, leve o bolão que eu levo uma garrafa de café. É ali, onde existia o Campo do Bambi.
Se precisar, é só pedir a Judas! Ops, ajuda...

(Texto devidamente registrado na Biblioteca Nacional – autor: Marcos Ivan de Carvalho, publicitário e jornalista, autor do Dicionário de Lendas Inventadas).amos 

terça-feira, 7 de março de 2017

DESAFIO CULTURAL: DICIONÁRIO DAS LENDAS INVENTADAS

Prosseguindo com as lendas já catalogadas em nosso Dicionário das Lendas Inventadas, trazemos hoje um pouco de mistério bem dosado.
Se você desejar enviar alguma lenda sua, inventada, para fazer parte desse Dicionário, é necessário que a envie com a devida autorização de publicação, seus dados pessoais e a declaração de ser de sua autoria. Ideal é proceder ao registro do texto junto à Biblioteca Nacional, como fazemos com os textos publicados de nossa autoria.

LENDA DA VEZ: DONA DITA BOIADEIRA

Numa noite escura, muito fria, quase para o meio do mês de junho, ouvi pela primeira vez essa história/lenda.
Havia, pelas bandas do Ribeirão Grande, em Pinda, uma fazenda fincada nas beiradas da Serra da Mantiqueira, onde muita gente buscava emprego.

O fazendeiro, pessoa de muita fé e amigo de todos empregados, reunia-se com eles, pelo menos uma vez por semana, para botar as prosas em dia.
Dona Dita, viúva trabalhadeira, era mulata alta, de quase dois metros, já pelas casas dos 65 anos. 
Desde quando seu companheiro de sempre, o bom e velho João da Roça fizera a passagem, por conta de uma picada de urutu, a mulher buscava fazer as vezes dele, em todas as tarefas. Ia para a roça ainda sem o sol chegar, cuidava da várzea de arroz, limpava a erva daninha da aleiras já crescidas. 
Pelas três horas da tarde, campeava a boiada no pasto, recolhendo as novilhas e as vacas leiteiras com todo o cuidado.
Levava, no embornal, pão de milho, assado no forno de barro, garrafa d'água (que quase nunca bebia, porque adorava pegar água das bicas ou do riacho), um toco de fumo de rolo, canivete afiado, palha de milho para enrolar um “arranca peito”, sua marmitinha com virado de feijão, ovo frito, torresmo e arroz, uma vela branca e a indispensável caixa de fósforos.
Dependurado no num dos tirantes da sela, um lampião serviria para “alumiar” se preciso fosse alguma parada durante o caminho de volta. 
Do contrário, a cavalgada seria só com o clarão da lua, se houvesse tempo propício.
Todas as vezes, na ida para a lida, quando passava na curva do caminho onde a serpente atacou seu marido, Dita Boiadeira apeava do alazão, pedia licença para os senhores das matas e das estradas, ajoelhava-se e acendia “uma luz” para João ter sempre paz no lugar onde estivesse. 
Rezava uma prece, se benzia, montava e se despedia de João, pedindo dele a proteção em nome de Jesus. 
O tempo todo cantarolava algum ponto de boiadeiro, haja vista a sua devoção à Umbanda Sagrada.
Dona Dita também ouvia, atentamente, a prosa de todos, em volta da fogueira que servia para aquecer e assar qualquer coisa, mesmo quando não era uma grade de costela.
No mesmo fogo se fazia café para ficar doce com rapadura. De lamber os “beiços”, conforme dizia Zézinho da Conceição, um negrinho esperto, falador, amigo de todos, trabalhador e inteligente.
Prosa acabada, cada um ia para sua casa. Dona Dita puxava o alazão e caminhava até seu cantinho, um singelo rancho de madeira, com palha de sapé, herança de João. Nunca deixara ninguém mexer na casa, um capricho do marido que era bom construtor nos dias de sábado e domingo.
No caminho para o descanso, Dita sempre passava na vendinha da beira da estrada, onde o compadre Belarmino fazia festa na sua chegada. Lampião balançava a chama, na testeira da vendinha. 
A pedida era sempre a mesma: um toco de fumo, fósforos, um maço de velas, uma garrafa de pinga amarela. Às vezes levava um pouco de sal e açúcar. Não costuma comer arroz comprado. Preferia pegar na tulha, aquele arroz de bica corrida, para fazer com quirera e pé de frango.
Podia estar a chover pedras mas, se alguém precisasse de socorro, Dona Dita Boiadeira lá estava, com a carroça atrelada, uma lona de pano grosso. Era benzedeira, fazia partos, curava crianças com bucho virado, rezava animais doentes, aplicava injeções e até era capaz de acudir algum tipo de quebradura de osso no corpo dos vizinhos.
Até o padre Leôncio, frei franciscano, falava da importância de Dita Boiadeira para a comunidade.
Por isso, sempre dizia haver um lugar especial para ela, no céu, mas deveriam esperar muito lá, pois a tarefa dela por essas bandas de cá era indispensável.
Diz a lenda que, certa feita, já para perto da meia-noite, Zezinho da Conceição chegou desesperado, gritando e batendo palmas para chamar Dona Dita.
A mulata, com a tranquilidade de sempre, abriu a porta do casebre e notou o negrinho quase morto de cansaço, de tanto correr.
- Dona Dita do céu, vai lá em casa. Mãe 'tá nas úrtima... Nem fala mais, Dona Dita. 'Tá só babando e se virando dum lado pru outro...
Calma, meu filho... Pegue esse maço de velas e vai devagar. Daqui na sua casa dá uns 900 metros. Leve o fogo e conta cem passos, ajoelha e acenda uma vela. Vai fazendo isso cem passos por vez, meu menino, rezando e pedindo ajuda para sua mãe sarar. Eu vou atrelar a carroça e já vou atrás.
O rapaz pegou as velas e foi fazendo o que Dita Boiadeira falara.
Quando chegou em casa, a mãe estava assentada na cadeira, ainda assustada, mas sem aparentar qualquer coisa grave.
Onde cê tava, muleque? Mandei buscar dona Dita, ela já veio e foi embora e tu só chega agora?
Mãe, ela mandô eu vim na frente, fazenu umas reza e acendenu uma vela im cada cem passu qui eu dava. Disse qui inda ia pegá u cavalo pra ponhá na carroça!
 - Larga de sê mintiroso, fío. Dona Dita inté dexô uma garrafada aqui, cum remédim pra mim sará!
Mãe, juro procê! Dona Dita ainda nem deve tê saído di lá. Eu só parei uns poquinho, na istrada, pro móde cendê as vela qui ela pediu. Era pra vim rezando pra senhora sará, mãe!
 - Dêxa de prosa, muleque. Vai lavá esses pé e drumi. Manhã a gente fala disso...

Dona Conceição despertou ao primeiro canto do garnizé trepado sobre a cerca de bambu.
Abriu a janela e ficou à espera da passagem de Dona Dita.
Quase uma hora depois, cismou alguma coisa. Chamou Zé e perguntou se tinha visto Dona Dita Boiadeira passar. Zé, que ajudava o pai na ordenha de duas vacas, no pequeno curral, disse não ter visto a mulata amiga de todos. Falou isso sem olhar para a mãe, pois estava triste por ela não acreditar no que havia dito à noite.
Chama o pai. A gente vai lá agradecê a ajuda da Dona Dita.
Tá bão. Daí inté ela afirma qui eu num tô mentinu...

O três foram caminhando até a casa da Boiadeira Benzedeira.
De longe já avistavam um punhado de gente na porta, muitas mulheres chorando.
O patrão, parando o velho jipão ao lado da porteira, abraçou dona Conceição e chorou.
Comadre, perdemos Dona Dita.
Cumé qui é?
Perdemos Dona Dita. Ela me pediu para levá-la ontem à noite para a cidade. Estava sentindo uma forte dor no peito. Não aguentou chegar ao hospital. Infartou no caminho...
Num pode sê, cumpadi. Ela 'teve lencasa pur vorta da meia noite, cuidando d'eu! Vim aqui pra falá da minha gratidão...
Ela faleceu às 8 da noite. Não avisei antes porque precisava cuidar das coisas para o velório. O pedido dela era para ser velada aqui na roça... Está lá dentro, no rancho...
Inté pareci que vô creditá... Ceis tão fazenu argum tipo de brincadera di mar gosto.
Zézinho, que já havia chegado ao rancho, voltou com olhos arregalados, tremendo feito vareta no vendaval.
Mãe do céu... Dona Dita tá lá sim, mortinha drento dum caxão.
Minha nossa...

Depois do velório e do enterro, quando voltavam para casa, já noitinha, desceram do onibus que o patrão havia chamado para levar os empregados ao enterro, Conceição, o marido e o filho não entendiam porque haviam sete velas acesas desde a porteira até o rancho onde moravam.
Tudo ficou mais esquisito quando encontraram, em cima de um banco, na sala, o chapéu de couro que Dona Dita Boiadeira usava.
Ela veio aqui inté despois di morta, gente! Deus a tenha e receba na grória, disse Conceição, fazendo o sinal da cruz.

Dizem, os antigos, que Dona Dita não queria deixar de fazer sua última boa ação, curando uma amiga querida. 
Por isso, mesmo em espírito, fez o que podia e precisava ser feito.
Desse tempo em diante, todos daquelas paragens do Ribeirão Grande que precisam de algum tipo de ajuda à noite, saem de casa cantando uma cantiga mais ou menos assim:

“Vou na venda buscar, vou na venda buscar, um maço de velas pro caminho clarear. (bis)
Dona Dita Boiadeira no caminho vai comigo, por onde eu passar, me livrando dos perigos (bis)”


Em alguns templos de umbanda pode ser que, qualquer dia, um boiadeiro possa contar se essa lenda é verdadeira ou foi inventada...

Texto: Marcos Ivan de Carvalho
Publicitário e jornalista, MTb 36001
Direitos autorais registrados.