segunda-feira, 10 de julho de 2017

VEJA ISTO!

DEFINITIVAMENTE VOCÊ É CAPAZ

sábado, 13 de maio de 2017

NEGRO CAETANO (SALVE 13 DE MAIO, DIA DOS PRETOS VELHOS)


(Texto: Marcos Ivan de Carvalho)
Negro Caetano derramava suor por todos os lados.
Sua fronte respingava água salgada, fazendo seu rosto brilhar, escorrido, de cara para o sol.
Vigorosas mãos recolhiam do chão as achas de madeira cortada, reduzida a pedaços por seu inexorável e afiado machado “Duas Caras”.
Negro Caetano cantava, enquanto empilhava, num canto do celeiro, aqueles retalhos de eucalipto descascado e ainda trazendo, nas fibras, gotas de seu suor.
Seu canto era mistura de sucessos da música de seresta com recortes de sambas do Paulinho da Viola e, ainda, alguns resgates da Tropicália. Vez ou outro sua herança africana deixava passar alguma cantiga iorubá, saravando os ancestrais. 
Parecia, assim, resgatar a fibra e o valor de seus antepassados, cujo suor muitas vezes era contido de sangue, por conta das chibatas implacáveis dos feitores...
Às vezes Caetano arriscava passear pela seara da Bossa Nova, cantando “olha que coisa mais linda”, como ele dizia, em ritmo bem lento. Aliás, Negro Caetano sussurrava a letra da “Garota de Ipanema” como se fosse uma espécie de oração.
Empilhados os tocos de lenha, o forte homem aproximou-se do poço, pendeu o corpo para frente e, com uma cuia de cabaça, despejou água de poço na nuca e nos pulsos.
Utilizando a mesma cuia, sorveu generosos goles da mesma água de poço, quebrou para trás a aba do chapéu de palha. Assentou-se num toco de árvore, estrategicamente colocado sob a beira da cobertura de sapé do celeiro da chácara.
Sem parar de cantarolar, Negro Caetano se benzeu, orou alguma oração, recitando sonoramente um amém. Ato contínuo levou as mãos para dentro do embornal de pano.
De dois pratos, um emborcado sobre o outro, apareceu seu banquete de almoço: torresmo frio, arroz frio, feijão frio, ovo frito frio.
Porque não gostava de “galfos”, Caetano negro preferia usar colher.
Seus dois tocos de dente, na frente, seguravam as porções do alimento enviando-as imediatamente para a voraz mastigação no fundo da boca.
Entre um bocado e outro, Caetano trabalhador esboçava cantar o “Torresmo à Milanesa”, de Adoniram Barbosa.
As crianças do patrãozinho tentavam compreender as palavras misturadas com mastigação. Esborrachavam-se de rir, com as rimas improvisadas do homem cortador de lenha.
O suado negro trabalhador apreciava ser assistido pelos “toquinhos de gente”. Fora educado pelos pais e pela avó a ser, realmente, educado para com todas as pessoas.
De origens humildes, Negro Caetano havia cursado apenas o primeiro ano, naqueles tempos do grupo escolar. Precisou, logo, botar o pé na estrada, quando os pais o deixaram aos cuidados da avó. Foi a última vez que viu a verdadeira família. Seus pais nunca mais apareceram e Caetano não sabia dizer se estariam vivos.
Banquete de torresmo e ovos deglutido solenemente, o negro de camiseta regata recostou-se na parede do celeiro, passou as mãos sobre a barriga, talvez para limpá-las, fez o “pelo sinal da santa cruz”, agradecendo pelo alimento.
Mergulhou as mãos, novamente, no embornal. De lá saíram duas folhas de palha de milho, um naco de fumo de corda e um canivete com cabo de osso.
Pacientemente, enquanto continuava cantarolando uma mistura de Paulinho da Viola que passou na sua vida mais um pouco da coisa bonita que passa, Caetano fez picadinho do pedaço de fumo, alisou uma tira de palha, enrolando um cigarro.
Um antigo tubo de lança-perfume “Rodouro”, transformado em isqueiro, acendeu-lhe o cigarro de palha. Refestelando-se na grama, Caetano fez desenhos de fumaça no ar, encantando as crianças do patrão.
Estendeu a mão, apanhando do mesmo embornal, um pedaço de folha de jornal, pondo-se a ler em voz alta.
O tanto de notícias despejado no ar, pela incrível capacidade de improviso do suado negro fumante trabalhador, fazia o pequeno toco de jornal parecer verdadeiro caderno de notícias da cidade, de qualquer diário de grande circulação.
Voltando-se para o lado do poente, Negro Caetano esticou o corpo todo, levantou-se, benzendo-se novamente. Afagou a cabeça de cada uma das quatro crianças e voltou ao trabalho.
Cortou quase uns três metros de lenha mais.
Lavou-se com água do mesmo poço; despediu-se do patrão, após pegar os dez reais pelo dia de trabalho.
Tinha motivos de sobra para passar na vendinha do “seu” Ariosto, à beira do caminho, comprar um toquinho de fumo, um pedaço de “mortandela”, cinco ou seis pães emborrachados pelo tempo de espera na cestinha de bambu da venda.
Ia para casa, feliz, para dormir sozinho, acordar sozinho e pensar em tempos melhores.
Sua família, de algum tempo para cá, era só ele, além de Deus. A avó havia morrido meses atrás.
No dia seguinte ao descanso de herói, Negro Caetano, certamente, estaria pronto para mais alguns metros de lenha e para a admiração de outras crianças, de outros patrões, em um dos inúmeros sítios e chácaras para final de semana de quem “pode mais e sua menos”.

Nem por isso a vida, para ele, seria a pior coisa da vida.

terça-feira, 28 de março de 2017

LENDA DO CORDÃO DE FOGO

O Desafio Cultural para inclusão de textos no "Dicionário de Lendas Inventadas" (autorais e compiladas por Marcos Ivan de Carvalho) traz mais uma página interessante.
Com a proximidade da Semana Santa, essa lenda narra um fato possivelmente verídico acontecido anos atrás também em Pindamonhangaba, cidade "sede" do Dicionário.

Participe você também deste Desafio, enviando sua contribuição, devidamente assinada e autorizada a ser publicada.
Nome completo, RG, endereço de email, cidade. Utilize nomes fictícios, quando se referir a personagens verdadeiras.
Endereço para envio: ivanpress@gmail.com.
Desafio Cultural meramente recreativo, sem fins lucrativos. De repente, fluindo, se transforma em livreto.

Lenda do Cordão de Fogo


Pessoas mais antigas da cidade garantem ser verdade a Lenda Inventada do “Cordão de Fogo”.
Pesquisei junto a alguns jornais mais antigos e, realmente, encontrei algumas referências, apesar de rasas, a respeito.

Era tradição, pelos lados do antigo Campo do Bambi, hoje importante parte do Jardim Cristina, em Pindamonhangaba, algumas famílias se reunirem para festejarem o Sábado de Aleluia.
Os preparativos começavam já na Sexta-feira Santa, com a molecada toda procurando montar um enorme boneco representando o Judas. Esse bonecão seria espancado até virar farelo, no sábado ao meio dia.

Como não havia iluminação pública, o pessoal se reunia, comprava querosene na vendinha do Zé Baixinho e montava uma rede improvisada, com lamparinas fabricadas utilizando-se latas de óleo de cozinha. Naqueles tempos ainda não se falava muito em reciclagem e o plástico passava longe de ser substituto de muitas embalagens fabricadas, até então, em vidro ou lata.

A cada cinco ou seis metros, uma lamparina improvisada, sobre um pedaço de bambu fincado no chão. Altura de mais ou menos dois metros, já que a maioria do grupo era de crianças trabalhando na montagem do boneco, preparando as varas de espancamento, montando fitas de bombinhas “cabeça de nego” para compor o recheio do Judas.

Seu Arlindo, um baixote de uns 70 anos de idade, botava as mãos na massa e fazia, com jornal e trigo, a careta do condenado. Enquanto trabalhava, cantava qualquer coisa ininteligível, fazendo a garotada se divertir ao tentar entender o que o velhinho dizia no canto.

Chico da Zefa, um invocado carvoeiro, era o encarregado de montar as lamparinas, enfiar os cordões pelo furo da tampa das latas e encher o reservatório com querosene “Jacaré”. O rapaz não gostava de ser atrapalhado nessa importante tarefa.

Lá pela meia-noite da Sexta-feira Santa, as mães das crianças chegavam com bolão de fubá, café com leite, bolachas, pipoca e “minduim” torrado e pão de nhame. Era quando seu Arlindo largava a escultura de jornal e trigo, esfregava as mãos no avental e chegava “premêro” na fila do bolão. Pegava duas fatias. Dizia que era uma para ele e outra para o Judas, a sua última refeição...

Até um dia, não se sabe ao certo qual o ano, tudo deixou de acontecer no Campo do Bambi. Era hora do café noturno.

Arlindo, apostando corrida com Chico da Zefa, tropeçou numa das pernas do Judas, se enroscou todo numa das lamparinas acesas ali perto, exatamente uma que Chico montava e não havia, ainda, cortado a sobra de cordão.
Para ajudar, o rolo de cordão estava em cima do latão de querosene. Chico usava passar a ponta do cordão por dentro da alça da tampa do latão, improvisando um esticador.

No alvoroço que se seguiu, para acudir o velhote, Dona Gorda, a madrinha da turma, trombou com um dos moleques e se firmou num poste de bambu que já continha uma lamparina.
A chama da lata incendiou o latão de querosene, que estava tombado, molhando o pé do boneco.

Pelamor”!, alguém gritou.
Si manda tudu mundu”, disse outro, acrescentando que ia “isprudí” tudo...

E foi assim...
O Judas, já gordo de bombinhas, buscapés, “peidos de véia”, começou a pular feito perereca assustada. Não parava no chão.

Era estouro do todo jeito, para todos os lados. Enquanto isso, ninguém olhava para trás. Era só correr e correr para não se queimar.
Seu Arlindo, apesar de assustado, não se machucou. Apenas chorava o “disastri” e procurava, no dia seguinte, o resto da cara do Judas.

Chico da Zefa, com um dedão enfaixado por causa de queimadura, ajudava o velhote, pedindo desculpas pela brincadeira doida de correr feito criança só para pegar bolão de fubá.
Nos anos seguintes não mais houve o “mutirão do Judas”.

As pessoas mais cismadas começaram a dizer que foi vingança do boneco.
Todos os anos ele apanhava, apanhava, apanhava e, ainda por cima, era “detonado” por inteiro.
Não sobrava um pedaço de roupa. Tudo queimado. Vez ou outra, uma sola de sapato velho, um resto de chapéu de palha. Isso, quando “voavam” no começo das explosões.

O costume, com o tempo, era de as pessoas se reunirem na beirada do campo, com café e bolão, para trocar conversa e lembrar as façanhas dos mutirões passados.
Há quem afirme, dessa época, ter visto um enorme boneco desenhado no chão do campo de futebol, na Sexta-feira Santa. Era um desenho feito com uma espécie de cordão de lamparina, aceso e com brilho intenso, amarelo e vermelho. Depois de alguns minutos no chão, o desenho em cordão de fogo se levantava e saía correndo atrás de quem se aproximasse.

Até chamaram o padre Simeão para benzer o lugar. Ele foi para agradar a turma, aproveitou para tomar café com bolão. Naquele ano o boneco vingador não apareceu em forma de cordão aceso.
Anos seguidos, conforme anotações na caderneta de dona Vivinha, a professora do bairro, o bonecão apareceu sim, todo aceso e correndo atrás dos curiosos.

Vou esperar a próxima Sexta-feira para ver ser isso acontece ainda.
O problema é que o campo já não existe e quem vai fazer o café com bolão?
Se você tiver coragem, leve o bolão que eu levo uma garrafa de café. É ali, onde existia o Campo do Bambi.
Se precisar, é só pedir a Judas! Ops, ajuda...

(Texto devidamente registrado na Biblioteca Nacional – autor: Marcos Ivan de Carvalho, publicitário e jornalista, autor do Dicionário de Lendas Inventadas).amos 

terça-feira, 7 de março de 2017

DESAFIO CULTURAL: DICIONÁRIO DAS LENDAS INVENTADAS

Prosseguindo com as lendas já catalogadas em nosso Dicionário das Lendas Inventadas, trazemos hoje um pouco de mistério bem dosado.
Se você desejar enviar alguma lenda sua, inventada, para fazer parte desse Dicionário, é necessário que a envie com a devida autorização de publicação, seus dados pessoais e a declaração de ser de sua autoria. Ideal é proceder ao registro do texto junto à Biblioteca Nacional, como fazemos com os textos publicados de nossa autoria.

LENDA DA VEZ: DONA DITA BOIADEIRA

Numa noite escura, muito fria, quase para o meio do mês de junho, ouvi pela primeira vez essa história/lenda.
Havia, pelas bandas do Ribeirão Grande, em Pinda, uma fazenda fincada nas beiradas da Serra da Mantiqueira, onde muita gente buscava emprego.

O fazendeiro, pessoa de muita fé e amigo de todos empregados, reunia-se com eles, pelo menos uma vez por semana, para botar as prosas em dia.
Dona Dita, viúva trabalhadeira, era mulata alta, de quase dois metros, já pelas casas dos 65 anos. 
Desde quando seu companheiro de sempre, o bom e velho João da Roça fizera a passagem, por conta de uma picada de urutu, a mulher buscava fazer as vezes dele, em todas as tarefas. Ia para a roça ainda sem o sol chegar, cuidava da várzea de arroz, limpava a erva daninha da aleiras já crescidas. 
Pelas três horas da tarde, campeava a boiada no pasto, recolhendo as novilhas e as vacas leiteiras com todo o cuidado.
Levava, no embornal, pão de milho, assado no forno de barro, garrafa d'água (que quase nunca bebia, porque adorava pegar água das bicas ou do riacho), um toco de fumo de rolo, canivete afiado, palha de milho para enrolar um “arranca peito”, sua marmitinha com virado de feijão, ovo frito, torresmo e arroz, uma vela branca e a indispensável caixa de fósforos.
Dependurado no num dos tirantes da sela, um lampião serviria para “alumiar” se preciso fosse alguma parada durante o caminho de volta. 
Do contrário, a cavalgada seria só com o clarão da lua, se houvesse tempo propício.
Todas as vezes, na ida para a lida, quando passava na curva do caminho onde a serpente atacou seu marido, Dita Boiadeira apeava do alazão, pedia licença para os senhores das matas e das estradas, ajoelhava-se e acendia “uma luz” para João ter sempre paz no lugar onde estivesse. 
Rezava uma prece, se benzia, montava e se despedia de João, pedindo dele a proteção em nome de Jesus. 
O tempo todo cantarolava algum ponto de boiadeiro, haja vista a sua devoção à Umbanda Sagrada.
Dona Dita também ouvia, atentamente, a prosa de todos, em volta da fogueira que servia para aquecer e assar qualquer coisa, mesmo quando não era uma grade de costela.
No mesmo fogo se fazia café para ficar doce com rapadura. De lamber os “beiços”, conforme dizia Zézinho da Conceição, um negrinho esperto, falador, amigo de todos, trabalhador e inteligente.
Prosa acabada, cada um ia para sua casa. Dona Dita puxava o alazão e caminhava até seu cantinho, um singelo rancho de madeira, com palha de sapé, herança de João. Nunca deixara ninguém mexer na casa, um capricho do marido que era bom construtor nos dias de sábado e domingo.
No caminho para o descanso, Dita sempre passava na vendinha da beira da estrada, onde o compadre Belarmino fazia festa na sua chegada. Lampião balançava a chama, na testeira da vendinha. 
A pedida era sempre a mesma: um toco de fumo, fósforos, um maço de velas, uma garrafa de pinga amarela. Às vezes levava um pouco de sal e açúcar. Não costuma comer arroz comprado. Preferia pegar na tulha, aquele arroz de bica corrida, para fazer com quirera e pé de frango.
Podia estar a chover pedras mas, se alguém precisasse de socorro, Dona Dita Boiadeira lá estava, com a carroça atrelada, uma lona de pano grosso. Era benzedeira, fazia partos, curava crianças com bucho virado, rezava animais doentes, aplicava injeções e até era capaz de acudir algum tipo de quebradura de osso no corpo dos vizinhos.
Até o padre Leôncio, frei franciscano, falava da importância de Dita Boiadeira para a comunidade.
Por isso, sempre dizia haver um lugar especial para ela, no céu, mas deveriam esperar muito lá, pois a tarefa dela por essas bandas de cá era indispensável.
Diz a lenda que, certa feita, já para perto da meia-noite, Zezinho da Conceição chegou desesperado, gritando e batendo palmas para chamar Dona Dita.
A mulata, com a tranquilidade de sempre, abriu a porta do casebre e notou o negrinho quase morto de cansaço, de tanto correr.
- Dona Dita do céu, vai lá em casa. Mãe 'tá nas úrtima... Nem fala mais, Dona Dita. 'Tá só babando e se virando dum lado pru outro...
Calma, meu filho... Pegue esse maço de velas e vai devagar. Daqui na sua casa dá uns 900 metros. Leve o fogo e conta cem passos, ajoelha e acenda uma vela. Vai fazendo isso cem passos por vez, meu menino, rezando e pedindo ajuda para sua mãe sarar. Eu vou atrelar a carroça e já vou atrás.
O rapaz pegou as velas e foi fazendo o que Dita Boiadeira falara.
Quando chegou em casa, a mãe estava assentada na cadeira, ainda assustada, mas sem aparentar qualquer coisa grave.
Onde cê tava, muleque? Mandei buscar dona Dita, ela já veio e foi embora e tu só chega agora?
Mãe, ela mandô eu vim na frente, fazenu umas reza e acendenu uma vela im cada cem passu qui eu dava. Disse qui inda ia pegá u cavalo pra ponhá na carroça!
 - Larga de sê mintiroso, fío. Dona Dita inté dexô uma garrafada aqui, cum remédim pra mim sará!
Mãe, juro procê! Dona Dita ainda nem deve tê saído di lá. Eu só parei uns poquinho, na istrada, pro móde cendê as vela qui ela pediu. Era pra vim rezando pra senhora sará, mãe!
 - Dêxa de prosa, muleque. Vai lavá esses pé e drumi. Manhã a gente fala disso...

Dona Conceição despertou ao primeiro canto do garnizé trepado sobre a cerca de bambu.
Abriu a janela e ficou à espera da passagem de Dona Dita.
Quase uma hora depois, cismou alguma coisa. Chamou Zé e perguntou se tinha visto Dona Dita Boiadeira passar. Zé, que ajudava o pai na ordenha de duas vacas, no pequeno curral, disse não ter visto a mulata amiga de todos. Falou isso sem olhar para a mãe, pois estava triste por ela não acreditar no que havia dito à noite.
Chama o pai. A gente vai lá agradecê a ajuda da Dona Dita.
Tá bão. Daí inté ela afirma qui eu num tô mentinu...

O três foram caminhando até a casa da Boiadeira Benzedeira.
De longe já avistavam um punhado de gente na porta, muitas mulheres chorando.
O patrão, parando o velho jipão ao lado da porteira, abraçou dona Conceição e chorou.
Comadre, perdemos Dona Dita.
Cumé qui é?
Perdemos Dona Dita. Ela me pediu para levá-la ontem à noite para a cidade. Estava sentindo uma forte dor no peito. Não aguentou chegar ao hospital. Infartou no caminho...
Num pode sê, cumpadi. Ela 'teve lencasa pur vorta da meia noite, cuidando d'eu! Vim aqui pra falá da minha gratidão...
Ela faleceu às 8 da noite. Não avisei antes porque precisava cuidar das coisas para o velório. O pedido dela era para ser velada aqui na roça... Está lá dentro, no rancho...
Inté pareci que vô creditá... Ceis tão fazenu argum tipo de brincadera di mar gosto.
Zézinho, que já havia chegado ao rancho, voltou com olhos arregalados, tremendo feito vareta no vendaval.
Mãe do céu... Dona Dita tá lá sim, mortinha drento dum caxão.
Minha nossa...

Depois do velório e do enterro, quando voltavam para casa, já noitinha, desceram do onibus que o patrão havia chamado para levar os empregados ao enterro, Conceição, o marido e o filho não entendiam porque haviam sete velas acesas desde a porteira até o rancho onde moravam.
Tudo ficou mais esquisito quando encontraram, em cima de um banco, na sala, o chapéu de couro que Dona Dita Boiadeira usava.
Ela veio aqui inté despois di morta, gente! Deus a tenha e receba na grória, disse Conceição, fazendo o sinal da cruz.

Dizem, os antigos, que Dona Dita não queria deixar de fazer sua última boa ação, curando uma amiga querida. 
Por isso, mesmo em espírito, fez o que podia e precisava ser feito.
Desse tempo em diante, todos daquelas paragens do Ribeirão Grande que precisam de algum tipo de ajuda à noite, saem de casa cantando uma cantiga mais ou menos assim:

“Vou na venda buscar, vou na venda buscar, um maço de velas pro caminho clarear. (bis)
Dona Dita Boiadeira no caminho vai comigo, por onde eu passar, me livrando dos perigos (bis)”


Em alguns templos de umbanda pode ser que, qualquer dia, um boiadeiro possa contar se essa lenda é verdadeira ou foi inventada...

Texto: Marcos Ivan de Carvalho
Publicitário e jornalista, MTb 36001
Direitos autorais registrados.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

DESAFIO CULTURAL: DICIONÁRIO DAS LENDAS INVENTADAS - PARTICIPE!

Lenda da Bica da Galega


O Dicionário das Lendas Inventadas traz, em um de seus capítulos, a Lenda da Bica da Galega, fio d'água permanente escorrendo, na atualidade, pelas bandas de uma das laterais do caminho ferroviário da Estrada de Ferro Campos do Jordão.

Água fresca, por natureza, capaz de saciar a sede de tantos quantos a buscam para o consumo em casa ou durante as andanças naturais de quem vai para o trabalho e vem do trabalho; caminha por esporte; pratica esportes na área verde ao lado e, ainda, daqueles outros tantos passageiros das estradas da vida, ainda sem ter seu porto de chegada.

Daí, o fato de surgirem diversas lendas a respeito da Bica da Galega.

Caso você não saiba da existência de nenhuma delas, aprecie esta catalogada pelo Dicionário das Lendas Inventadas, ainda em elaboração. 

Se desejar, envie sua contribuição, lembrando: o desafio é enviar uma lenda inventada, com identificação do autor e necessária autorização para publicação.
Utilize o e-mail: ivanpress@gmail.com
Se possível, registre o texto na Biblioteca Nacional, https://www.bn.gov.br/servicos/direitos-autorais, para garantir sua propriedade intelectual.

Diz a Lenda Inventada sobre a Bica da Galega:

Os Bento Rodrigues traziam, na herança de sangue, o conservadorismo das famílias donas de amplas faixas de terra na região. Plantavam café e arroz e mantinham, além dos negros trabalhadores, alguns nativos da nação tupi-guarani. Estes eram utilizados para o trabalho no cultivo das lavouras de mandioca, nhame e milho, por terem certa especialização natural.
Coronel Zé Bento Rodrigues era um velho alto, sisudo, de poucas palavras com pessoas as quais não pertenciam ao clã.

Para os empregados ou estranhos, parecia mastigar as palavras, quando estas passavam mais claras pelos vãos de seus largos dentes da frente. Para a esposa era um cavalheiro. Todos da família lhe tinham respeito, quase um misto de temor em contrariá-lo.

Um contraponto notável era o comportamento do filho mais jovem, Pedro Bento. Fazia festa com os curumins, brincava de correr e esconder com os negrinhos da roça. Tinha lá pelos seus 17 anos de idade quando se descobriu tocado por algo muito além da simples amizade para com a indiazinha Araci. Não podia ver a jovem correr feito corça pelos bosques. Disparava atrás dela e a alcançava, derrubando-a delicadamente sobre a relva de uma clareira.

Olhos diante de olhares, nenhuma palavra. Apenas o sussurrar suave das respirações e as mãos se buscando, num entrelaçado repleto de significado.

Araci tinha cabelos longos, brilhantes, fortes, até a altura dos quadris, olhar doce e bastante terno. Isso intrigava ao jovem senhorzinho, o qual não entendia como os da sua família não tinham tanta saúde e beleza como Araci e sua tribo.

O envolvimento foi se tornando rotineiro, os sentimentos se fortaleceram, apesar das supostas diferenças. Com o tempo, o Coronel Zé Bento já não tinha mais paciência para entender ser apenas uma brincadeira jovial. Percebia a coisa estar caminhando para um romance para o qual jamais daria seu consentimento. Era muita disparidade social, para o cabeça dos Bento Rodrigues.

Dona Felícia, sua esposa, até dava consentimento e passava horas a imaginar como seria um neto filho de uma indiazinha linda como Araci. Até procurou saber o significado do nome e o pai da menina, respeitosamente explicou como eram escolhidos os nomes dos nativos. O da garota tinha a representação da chegada de dia novo, aurora brilhante.

A mãe de Pedro, na realidade, muito fazia – às escondidas – para os jovens se encontrarem muito “por acaso”, até o momento quando o marido, descobrindo as artimanhas, trocou seus índios por um outro grupo de servos de uma família também residente às margens do rio Piracuama.

Não adiantou essa medida.
Pedro Bento, em madrugada de pouca lua e muita chuva, selou seu cavalo, juntou alguns pertences, beijou a fronte da mãe, ainda na sala de estar fazendo suas costuras enquanto o marido já dormia, foi em busca da jovem amada.

Contam, os historiadores inventivos, ter sido a última vez em que Felícia viu o filho. Pedro passou pela fazenda onde estava Araci, colocou-a na garupa da montaria e embrenhou-se na mata, deixando poucos rastros por conta das águas correndo sobre o chão de folhas.

Foram quase onze meses de fuga. Alguns nativos davam proteção ao jovem casal, quando de suas paradas para descanso e alimentação.

Nesses meses, houve a transformação de um casal em fuga para uma família em fuga. Araci dera à luz um curumim mestiço, ainda sem nome, pois o avô materno seria o responsável pela escolha. Ajagunã, seu pai, jamais veria o neto. Bento Rodrigues havia descoberto seu paradeiro e o obrigou a dar indicações de como alcançar o filho. Fingiu querer ajudar os jovens fugitivos. Ajagunã mostrou a rota seguida e a intenção do casal. Foi morto sem piedade nenhuma e abandonado amarrado a um tronco.

Mais alguns dias de busca e fuga. Pedro Bento, num momento de muito cansaço, não percebera uma cascavel atacar seu cavalo. O animal pereceu.

Sem a única opção de transporte para lhes facilitar a jornada, Pedro, Araci e o filho seguiram por mais algumas semanas até serem alcançados pelo grupo de Bento Rodrigues.

Foram acuados até uma grota escura, bastante úmida. Pedro não pensou duas vezes, pois sabia as intenções do pai em dar fim à sua companheira.
Carregou o arcabuz e as duas garruchas, disparando contra os perseguidores. O próprio coronel Bento fez o disparo mortal contra o peito do filho.

Araci, agarrada ao filho, procurava sinais vitais no amado. Debruçada sobre o já cadáver, parecia cantar um lamento em tupi-guarani, enquanto buscava ocultar o filho dos olhos do avô.
O bebê, assustado com o alarido todo, pôs-se a chorar, revelando estar sob alguns panos os quais lhes serviam de coberta.

Coronel Bento Rodrigues apeou de seu cavalo, esbofeteou a índia, arrancando-lhe dos braços o filho. Montou novamente e retirou-se, seguido do bando que o escoltava.
Araci, despejou-se em lágrimas sobre o corpo inerte do companheiro, acenava para lhe deixarem o filho. Os índios, até então seus protetores, também foram abatidos pela estúpida maldade de Bento Rodrigues.

Sem parar de chorar, Araci esvaiu-se em lágrimas, até formar uma espécie de lagoa.
Muitos anos depois, uma família de europeus, à época já tidos como "galegos", pela alvura da pele, se instalou próximo a uma bela lagoa, na qual se banhava, todas as tardes, a filha mais jovem.

Num desses mergulhos, a moça encontrou um belíssimo arranjo de penas, sob as águas límpidas.
Ao apanhar, da fenda rochosa submersa, as penas, algumas pedras se soltaram abrindo uma espécie de bica, para onde as águas da lagoa começaram a correr.

Contam, os antigos, que essas penas se soltaram dos cabelos de Araci e foram arrastadas, pelo vento, até a lagoa de suas lágrimas. Seu doce olhar não permitiu existir sal na lagoa.
A partir desta feita, a bica passou a ser denominada Bica da Galega, por ter sido encontrada, ou provocada, pela jovem europeia que se banhava na lagoa de Araci.

A Bica da Galega, em Pindamonhangaba, até hoje serve à população com farta água doce, sem nenhuma necessidade de tratamentos químicos. É procurada por moradores da cidade, de localidades vizinhas e turistas os quais, por incrível que pareça, já conhecem essa lenda inventada para o Dicionário de Lendas Inventadas.
(Texto inventado por Marcos Ivan de Carvalho, publicitário e jornalista e devidamente registrado na Biblioteca Nacional).


sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

NINGUÉM ESCAPA DELA! (Para refletir muito!)

Veio-me, à lembrança, um dos “causos” contados por um dos muitos Barbeiros da nossa infância.
Naqueles idos, papai nos levava para cortar cabelo “à americana”, estilo USArmy. Só um pouco de cabelos no topo da cabeça e o resto todinho raspado. Era uma medida econômica. Afinal, quatro garotos, aos preços atuais, custariam – no mínimo – R$ 40,00. O Abel Padeiro suava muito para nos dar sustento e conforto de família humilde, honesta. Vamos ao causo:
Dizia o Barbeiro Dito (nome em homenagem a todos quantos “mexeram com nossa cabeça”) que um chefe de estação da Central do Brasil ia contratar um guarda-linhas, aquele cidadão responsável pela sinalização de manobra dos trens e também por impedir o trânsito de pedestres e outros veículos não ferroviários por ocasião das manobras em passagens em nível sem barreiras.
Um dos candidatos era muito amigo do chefe da estação, mas não tinha qualificação para tal serviço. Preocupado em deixar de fora o amigo, o tal chefe criou um teste muito louco.
Questão única:
- Um trem, carregado de explosivos, está no leito principal da ferrovia. Outro trem, de passageiros se aproxima e não vai parar na estação. Vai passar direto, do Rio de Janeiro para São Paulo. O que você faria? 
A Rosinha pode ficar aqui, enquanto eu respondo? 
Pode sim. Até dar alguns palpites. Eu quero ajudar vocês nesta vaga...
Simplesmente eu faria a mudança da chave, desviando o outro trem para a linha secundária.
Não dá, a chave está emperrada e o pessoal não fez a manutenção.
Então acenaria com a bandeirinha, lá bem longe ainda, para o outro trem parar.
Não dá para usar bandeirinha. É noite.
Fácil! Acendo a luz de alerta, ela vai ficar piscando!
Estamos sem a luz de alerta. Queimou e não trocaram...
Pego o lampião de reserva e me arrisco, ficando em cima dos trilhos, acenando para o maquinista...
Impossível! O outro funcionário quebrou o lampião!
Dou um jeito de avisar o pessoal do trem...
Não dá, querido amigo. Ainda não inventaram celular, whatsapp, facebook, tweeter, instagram, essas coisas capazes de roubarem o raciocínio de muita gente...
Um minuto, acho que a Rosinha tem a ferramenta certa.
O chefe amigo dá um tempinho para o amigo candidato à vaga.
Menos de um minuto depois, o amigo do chefe dá a resposta:
- Olha, a gente agradece seu esforço, mas a Rosinha tem razão. Vamos usar a ferramenta dela, correr lá para os lados do topo do morro e ficar lá.
Ué, não entendi, amigo!
 - É que se a gente não for, e você também, vamos estar ferrados. Vai acontecer a maior explosão que Pinda já viu...
 - E quem disse isso?
A Rosinha, com a ferramenta dela.
Qual ferramenta?
Acho que você não conhece, já que nem tem namorada. É a Intuição Feminina. Ninguém escapa dela.
(Cara de paisagem).
Vem com a gente ou vai virar chuva de pedacinhos? “Fumus”!!!!!!!!!!!

Uma homenagem à minha mulher e parceira, dona de senhora Intuição: Edna Maischberger. 


(Texto: Marcos Ivan de Carvalho, publicitário e jornalista independente, Mtb 36001)