(Texto:
Marcos Ivan de Carvalho)
Negro
Caetano derramava suor por todos os lados.
Sua
fronte respingava água salgada, fazendo seu rosto brilhar,
escorrido, de cara para o sol.
Vigorosas
mãos recolhiam do chão as achas de madeira cortada, reduzida a
pedaços por seu inexorável e afiado machado “Duas Caras”.
Negro
Caetano cantava, enquanto empilhava, num canto do celeiro, aqueles
retalhos de eucalipto descascado e ainda trazendo, nas fibras, gotas
de seu suor.
Seu
canto era mistura de sucessos da música de seresta com recortes de
sambas do Paulinho da Viola e, ainda, alguns resgates da Tropicália.
Vez ou outro sua herança africana deixava passar alguma cantiga
iorubá, saravando os ancestrais.
Parecia, assim, resgatar a fibra e o valor de seus
antepassados, cujo suor muitas vezes era contido de sangue, por conta
das chibatas implacáveis dos feitores...
Às
vezes Caetano arriscava passear pela seara da Bossa Nova, cantando
“olha que coisa mais linda”, como ele dizia, em ritmo bem lento.
Aliás, Negro Caetano sussurrava a letra da “Garota de Ipanema”
como se fosse uma espécie de oração.
Empilhados
os tocos de lenha, o forte homem aproximou-se do poço, pendeu o
corpo para frente e, com uma cuia de cabaça, despejou água de poço
na nuca e nos pulsos.
Utilizando
a mesma cuia, sorveu generosos goles da mesma água de poço, quebrou
para trás a aba do chapéu de palha. Assentou-se num toco de árvore,
estrategicamente colocado sob a beira da cobertura de sapé do
celeiro da chácara.
Sem
parar de cantarolar, Negro Caetano se benzeu, orou alguma oração,
recitando sonoramente um amém. Ato contínuo levou as mãos para
dentro do embornal de pano.
De
dois pratos, um emborcado sobre o outro, apareceu seu banquete de
almoço: torresmo frio, arroz frio, feijão frio, ovo frito frio.
Porque
não gostava de “galfos”, Caetano negro preferia usar colher.
Seus
dois tocos de dente, na frente, seguravam as porções do alimento
enviando-as imediatamente para a voraz mastigação no fundo da boca.
Entre
um bocado e outro, Caetano trabalhador esboçava cantar o “Torresmo
à Milanesa”, de Adoniram Barbosa.
As
crianças do patrãozinho tentavam compreender as palavras misturadas
com mastigação. Esborrachavam-se de rir, com as rimas improvisadas
do homem cortador de lenha.
O
suado negro trabalhador apreciava ser assistido pelos “toquinhos de
gente”. Fora educado pelos pais e pela avó a ser, realmente,
educado para com todas as pessoas.
De
origens humildes, Negro Caetano havia cursado apenas o primeiro ano,
naqueles tempos do grupo escolar. Precisou, logo, botar o pé na
estrada, quando os pais o deixaram aos cuidados da avó. Foi a última
vez que viu a verdadeira família. Seus pais nunca mais apareceram e
Caetano não sabia dizer se estariam vivos.
Banquete
de torresmo e ovos deglutido solenemente, o negro de camiseta regata
recostou-se na parede do celeiro, passou as mãos sobre a barriga,
talvez para limpá-las, fez o “pelo sinal da santa cruz”,
agradecendo pelo alimento.
Mergulhou
as mãos, novamente, no embornal. De lá saíram duas folhas de palha
de milho, um naco de fumo de corda e um canivete com cabo de osso.
Pacientemente,
enquanto continuava cantarolando uma mistura de Paulinho da Viola que
passou na sua vida mais um pouco da coisa bonita que passa, Caetano
fez picadinho do pedaço de fumo, alisou uma tira de palha, enrolando
um cigarro.
Um
antigo tubo de lança-perfume “Rodouro”, transformado em
isqueiro, acendeu-lhe o cigarro de palha. Refestelando-se na grama,
Caetano fez desenhos de fumaça no ar, encantando as crianças do
patrão.
Estendeu
a mão, apanhando do mesmo embornal, um pedaço de folha de jornal,
pondo-se a ler em voz alta.
O
tanto de notícias despejado no ar, pela incrível capacidade de
improviso do suado negro fumante trabalhador, fazia o pequeno toco de
jornal parecer verdadeiro caderno de notícias da cidade, de qualquer
diário de grande circulação.
Voltando-se
para o lado do poente, Negro Caetano esticou o corpo todo,
levantou-se, benzendo-se novamente. Afagou a cabeça de cada uma das
quatro crianças e voltou ao trabalho.
Cortou
quase uns três metros de lenha mais.
Lavou-se
com água do mesmo poço; despediu-se do patrão, após pegar os dez
reais pelo dia de trabalho.
Tinha
motivos de sobra para passar na vendinha do “seu” Ariosto, à
beira do caminho, comprar um toquinho de fumo, um pedaço de
“mortandela”, cinco ou seis pães emborrachados pelo tempo de
espera na cestinha de bambu da venda.
Ia
para casa, feliz, para dormir sozinho, acordar sozinho e pensar em
tempos melhores.
Sua
família, de algum tempo para cá, era só ele, além de Deus. A avó
havia morrido meses atrás.
No
dia seguinte ao descanso de herói, Negro Caetano, certamente,
estaria pronto para mais alguns metros de lenha e para a admiração
de outras crianças, de outros patrões, em um dos inúmeros sítios
e chácaras para final de semana de quem “pode mais e sua menos”.
Nem
por isso a vida, para ele, seria a pior coisa da vida.