Prosseguindo com as lendas já catalogadas em nosso Dicionário das Lendas Inventadas, trazemos hoje um pouco de mistério bem dosado.
Se você desejar enviar alguma lenda sua, inventada, para fazer parte desse Dicionário, é necessário que a envie com a devida autorização de publicação, seus dados pessoais e a declaração de ser de sua autoria. Ideal é proceder ao registro do texto junto à Biblioteca Nacional, como fazemos com os textos publicados de nossa autoria.
LENDA DA VEZ: DONA DITA BOIADEIRA
Numa
noite escura, muito fria, quase para o meio do mês de junho, ouvi
pela primeira vez essa história/lenda.
Havia,
pelas bandas do Ribeirão Grande, em Pinda, uma fazenda fincada nas
beiradas da Serra da Mantiqueira, onde muita gente buscava emprego.
O
fazendeiro, pessoa de muita fé e amigo de todos empregados,
reunia-se com eles, pelo menos uma vez por semana, para botar as
prosas em dia.
Dona
Dita, viúva trabalhadeira, era mulata alta, de quase dois metros, já
pelas casas dos 65 anos.
Desde quando seu companheiro de sempre, o
bom e velho João da Roça fizera a passagem, por conta de uma picada
de urutu, a mulher buscava fazer as vezes dele, em todas as tarefas.
Ia para a roça ainda sem o sol chegar, cuidava da várzea de arroz,
limpava a erva daninha da aleiras já crescidas.
Pelas três horas da
tarde, campeava a boiada no pasto, recolhendo as novilhas e as vacas
leiteiras com todo o cuidado.
Levava,
no embornal, pão de milho, assado no forno de barro, garrafa d'água
(que quase nunca bebia, porque adorava pegar água das bicas ou do
riacho), um toco de fumo de rolo, canivete afiado, palha de milho
para enrolar um “arranca peito”, sua marmitinha com virado de
feijão, ovo frito, torresmo e arroz, uma vela branca e a
indispensável caixa de fósforos.
Dependurado
no num dos tirantes da sela, um lampião serviria para “alumiar”
se preciso fosse alguma parada durante o caminho de volta.
Do
contrário, a cavalgada seria só com o clarão da lua, se houvesse
tempo propício.
Todas
as vezes, na ida para a lida, quando passava na curva do caminho onde
a serpente atacou seu marido, Dita Boiadeira apeava do alazão, pedia
licença para os senhores das matas e das estradas, ajoelhava-se e
acendia “uma luz” para João ter sempre paz no lugar onde
estivesse.
Rezava uma prece, se benzia, montava e se despedia de
João, pedindo dele a proteção em nome de Jesus.
O tempo todo
cantarolava algum ponto de boiadeiro, haja vista a sua devoção à
Umbanda Sagrada.
Dona
Dita também ouvia, atentamente, a prosa de todos, em volta da
fogueira que servia para aquecer e assar qualquer coisa, mesmo quando
não era uma grade de costela.
No
mesmo fogo se fazia café para ficar doce com rapadura. De lamber os
“beiços”, conforme dizia Zézinho da Conceição, um negrinho
esperto, falador, amigo de todos, trabalhador e inteligente.
Prosa
acabada, cada um ia para sua casa. Dona Dita puxava o alazão e caminhava
até seu cantinho, um singelo rancho de madeira, com palha de sapé,
herança de João. Nunca deixara ninguém mexer na casa, um capricho
do marido que era bom construtor nos dias de sábado e domingo.
No
caminho para o descanso, Dita sempre passava na vendinha da beira da
estrada, onde o compadre Belarmino fazia festa na sua chegada.
Lampião balançava a chama, na testeira da vendinha.
A pedida era
sempre a mesma: um toco de fumo, fósforos, um maço de velas, uma
garrafa de pinga amarela. Às vezes levava um pouco de sal e açúcar.
Não costuma comer arroz comprado. Preferia pegar na tulha, aquele
arroz de bica corrida, para fazer com quirera e pé de frango.
Podia
estar a chover pedras mas, se alguém precisasse de socorro, Dona
Dita Boiadeira lá estava, com a carroça atrelada, uma lona de pano
grosso. Era benzedeira, fazia partos, curava crianças com bucho
virado, rezava animais doentes, aplicava injeções e até era capaz
de acudir algum tipo de quebradura de osso no corpo dos vizinhos.
Até
o padre Leôncio, frei franciscano, falava da importância de Dita
Boiadeira para a comunidade.
Por
isso, sempre dizia haver um lugar especial para ela, no céu, mas
deveriam esperar muito lá, pois a tarefa dela por essas bandas de cá
era indispensável.
Diz
a lenda que, certa feita, já para perto da meia-noite, Zezinho da
Conceição chegou desesperado, gritando e batendo palmas para chamar
Dona Dita.
A
mulata, com a tranquilidade de sempre, abriu a porta do casebre e
notou o negrinho quase morto de cansaço, de tanto correr.
- Dona
Dita do céu, vai lá em casa. Mãe 'tá nas úrtima... Nem fala
mais, Dona Dita. 'Tá só babando e se virando dum lado pru outro...
- Calma,
meu filho... Pegue esse maço de velas e vai devagar. Daqui na sua
casa dá uns 900 metros. Leve o fogo e conta cem passos, ajoelha e
acenda uma vela. Vai fazendo isso cem passos por vez, meu menino,
rezando e pedindo ajuda para sua mãe sarar. Eu vou atrelar a
carroça e já vou atrás.
O
rapaz pegou as velas e foi fazendo o que Dita Boiadeira falara.
Quando
chegou em casa, a mãe estava assentada na cadeira, ainda assustada,
mas sem aparentar qualquer coisa grave.
- Onde
cê tava, muleque? Mandei buscar dona Dita, ela já veio e foi
embora e tu só chega agora?
- Mãe,
ela mandô eu vim na frente, fazenu umas reza e acendenu uma vela im
cada cem passu qui eu dava. Disse qui inda ia pegá u cavalo pra
ponhá na carroça!
- Larga
de sê mintiroso, fío. Dona Dita inté dexô uma garrafada aqui,
cum remédim pra mim sará!
- Mãe,
juro procê! Dona Dita ainda nem deve tê saído di lá. Eu só
parei uns poquinho, na istrada, pro móde cendê as vela qui ela
pediu. Era pra vim rezando pra senhora sará, mãe!
- Dêxa
de prosa, muleque. Vai lavá esses pé e drumi. Manhã a gente fala
disso...
Dona
Conceição despertou ao primeiro canto do garnizé trepado sobre a cerca de bambu.
Abriu
a janela e ficou à espera da passagem de Dona Dita.
Quase
uma hora depois, cismou alguma coisa. Chamou Zé e perguntou se tinha
visto Dona Dita Boiadeira passar. Zé, que ajudava o pai na ordenha
de duas vacas, no pequeno curral, disse não ter visto a mulata amiga
de todos. Falou isso sem olhar para a mãe, pois estava triste por
ela não acreditar no que havia dito à noite.
- Chama
o pai. A gente vai lá agradecê a ajuda da Dona Dita.
- Tá
bão. Daí inté ela afirma qui eu num tô mentinu...
O
três foram caminhando até a casa da Boiadeira Benzedeira.
De
longe já avistavam um punhado de gente na porta, muitas mulheres
chorando.
O
patrão, parando o velho jipão ao lado da porteira, abraçou dona
Conceição e chorou.
- Comadre,
perdemos Dona Dita.
- Cumé
qui é?
- Perdemos
Dona Dita. Ela me pediu para levá-la ontem à noite para a cidade.
Estava sentindo uma forte dor no peito. Não aguentou chegar ao
hospital. Infartou no caminho...
- Num
pode sê, cumpadi. Ela 'teve lencasa pur vorta da meia noite,
cuidando d'eu! Vim aqui pra falá da minha gratidão...
- Ela
faleceu às 8 da noite. Não avisei antes porque precisava cuidar
das coisas para o velório. O pedido dela era para ser velada aqui
na roça... Está lá dentro, no rancho...
- Inté
pareci que vô creditá... Ceis tão fazenu argum tipo de brincadera
di mar gosto.
Zézinho,
que já havia chegado ao rancho, voltou com olhos arregalados,
tremendo feito vareta no vendaval.
- Mãe
do céu... Dona Dita tá lá sim, mortinha drento dum caxão.
- Minha
nossa...
Depois
do velório e do enterro, quando voltavam para casa, já noitinha,
desceram do onibus que o patrão havia chamado para levar os
empregados ao enterro, Conceição, o marido e o filho não entendiam
porque haviam sete velas acesas desde a porteira até o rancho onde
moravam.
Tudo
ficou mais esquisito quando encontraram, em cima de um banco, na
sala, o chapéu de couro que Dona Dita Boiadeira usava.
- Ela
veio aqui inté despois di morta, gente! Deus a tenha e receba na
grória, disse Conceição, fazendo o sinal da cruz.
Dizem,
os antigos, que Dona Dita não queria deixar de fazer sua última boa
ação, curando uma amiga querida.
Por isso, mesmo em espírito, fez
o que podia e precisava ser feito.
Desse
tempo em diante, todos daquelas paragens do Ribeirão Grande que
precisam de algum tipo de ajuda à noite, saem de casa cantando uma
cantiga mais ou menos assim:
“Vou
na venda buscar, vou na venda buscar, um maço de velas pro caminho
clarear. (bis)
Dona
Dita Boiadeira no caminho vai comigo, por onde eu passar, me livrando
dos perigos (bis)”
Em
alguns templos de umbanda pode ser que, qualquer dia, um boiadeiro
possa contar se essa lenda é verdadeira ou foi inventada...
Texto: Marcos Ivan de Carvalho
Publicitário e jornalista, MTb 36001
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